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Japão, EUA e as diferenças entre super-heróis

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Saitama de One Punch Man. Izuku Midoriya e All Might, de Boku no Hero Academia

Você já parou para pensar do porquê seus heróis favoritos são como são e tem determinados comportamentos? E como suas representações podem ser influenciadas diretamente pela cultura de origem de seus criadores, assim como o funcionamento da organização política de cada país? O recente massacre numa boate em Orlando, Flórida, nos Estados Unidos, que matou 50 pessoas, reacendeu o debate sobre controle de armas na América. A ONU (Organização das Nações Unidas) pediu que o país mudasse sua conduta em relação a armas de fogo, e o atual presidente Barack Obama pressionou o Senado por propostas de restrição, mas por enquanto todas foram rejeitadas nas votações. Enquanto no mundo real se discute o tema, nós, fãs de cultura pop, podemos refletir sobre através dos heróis.

Saitama, de One Punch Man
Saitama, de One Punch Man

Super-heróis são muito populares atualmente. Independente de como você se sente sobre um novo filme ou série de TV baseada numa história em quadrinhos saindo a cada cinco minutos, é inegável que benfeitores vestindo capas estão dominando a cultura pop. Um dos mais recentes produtos deste gênero é Boku no Hero Academia, originalmente um mangá de Kōhei Horikoshi e publicado pela revista Weekly Shonen Jump. Boku no Hero veio logo depois de outro anime de super-herói – One Punch Man – que estreou apenas seis meses antes, com boa recepção.

Boku No Hero Academia
Boku No Hero Academia

Apesar de ambos serem publicados pela Shonen Jump, as duas séries de super-heróis não poderiam ser mais diferentes. Boku no Hero Academia gira em torno de um grupo de adolescentes que frequentam uma escola especial para aprender sobre ser super-heróis usando suas habilidades especiais. É tudo o que você pode esperar de uma série de aventura da Shonen Jump – muita ação com momentos regulares de alívio cômico e um tom geral otimista. O protagonista, Izuku Midoriya, é amigável, dedicado, e sempre disposto a enfrentar o perigo para proteger aqueles que precisam de sua ajuda. Como muitas séries da Jump, o enredo é focado no jovem protagonista em busca de seus sonhos.

One Punch Man, por outro lado, é uma paródia das histórias em quadrinhos de super-heróis. É focado ainda mais na ação e humor do que Boku no Hero, mas seu humor é irônico. Heróis gastam tanto tempo disputando posições entre si quanto lutando contra as ameaças na cidade. O protagonista, Saitama, não pensa muito sobre a responsabilidade de proteger inocentes, ele só queria se tornar um super-herói para suprir emoções pessoais, e tende a se cansar do heroísmo em grande parte do tempo. O humor vem principalmente de sua indiferença em relação a ameaças e a facilidade com que ele pode se livrar delas. Em suma, Saitama é tão desinteressado por seu papel de herói como Izuku é apaixonada por ele.

Saitama e Midoriya
Saitama e Midoriya

Porém, mesmo com tantas diferenças de tom e perspectivas, My Hero Academia e One Punch Man compartilham muitos elementos de construção de mundo. Em ambas as histórias, os super-heróis são uma parte normal da vida. Muitos viram celebridades por seus atos heroicos e usam isso para adquirir fortuna. Cada série se dedica a mostrar uma realidade com organizações que registram e regulam os super-heróis e suas atividades, que incluem ainda um tipo de hierarquização e atribuição de categorias de heróis, através da análise de força e realizações. Os dois tipos de organização também concedem nomes oficiais para os heróis – Boku no Hero permite que escolham, e One Punch Man os força a decidir. Antes de entrar para essas organizações, os futuros heróis precisam provar-se dignos de ser profissionais licenciados. Em Academia, a escola de ensino médio formadora de heróis U.A. instrui os alunos sobre como dominar suas habilidades e lidar com a vida pública de um super-herói. Em One Punch-Man, o processo não é tão rigoroso, mas potenciais heróis ainda devem passar em um exame para provar que eles são fisicamente e mentalmente capazes de lidar com as super-funções.

Batman vs Superman: A Origem da Justiça
Batman vs Superman: A Origem da Justiça

Os dois animes têm abordagens diferentes para o gênero de super-heróis, mas ainda compartilham esse elemento central. A ideia de qualquer órgão regulador para a atividade dos super-heróis tem estado em evidência como principal conflito nas histórias de heróis americanos. No filme da DC Comics, Batman vs Superman: A Origem da Justiça, Batman não confia no Superman, acreditando que ele nem sempre vai usar seus poderes interessado somente em ajudar a humanidade, enquanto Superman observa nas ações de Batman um certo desrespeito pelas leis. A tensão de seus pontos de vista opostos sobre a forma como os poderes de cada um deve ser controlada, eventualmente, termina em briga. O filme Marvel, Capitão América: Guerra Civil, apresenta os Vingadores sendo divididos em dois grupos, porque alguns de seus membros apoiam a supervisão do governo e outros se opõem a ela. Essas são as premissas simplificadas dos dois filmes, lançados este ano, deixando de lado os detalhes específicos e pessoais para cada herói entrar em guerra, mas ambos compartilham as mesmas diferenças filosóficas entre os personagens principais. Em ambos os casos, o gancho final é que dois heróis populares vão lutar entre si, levando os espectadores a escolher lados da batalha.

Capitão América: Guerra Civil
Capitão América: Guerra Civil

Mas nos populares animes japoneses essa questão da regulação é tratada de forma completamente diferente. É simplesmente uma parte aceita da definição, e os personagens que não se submetem a este regulamento recebem pouco ou nenhum respeito. Em One Punch-Man, heróis que falham em registos oficiais são tratados como loucos delirantes, mesmo que tenham êxito salvando o mundo várias vezes. Saitama decide ficar registrado, apesar de não se importar se terá glória por suas ações – ele só aceita o processo porque é parte de ser um verdadeiro herói no Japão. Há um conflito em Boku no Hero Academia sobre a questão de regulação de super-heróis, quando uma equipe de vilões se opõe à forma como os super-heróis são restritos pela lei. Mas este conflito não é igual aos retratados pela Marvel e DC. Nas histórias americanas, os rostos de anti-regulação são Superman e Capitão América, dois dos mais fortes e conhecidos símbolos dos quadrinhos de super-herói. Em Academia, o rosto da anti-regulação não é tão charmoso e está entre os vilões.

Assim, enquanto super-heróis americanos debatem se precisam ou não de uma comissão para supervisionar suas ações, super-heróis japoneses parecem estar de acordo que devem ser regulados e quem se opõe a isso é louco. Não é surpresa que, se você representar um semelhante equivalente na vida real dessa questão com os mesmos dois grupos, eles provavelmente reagiriam de maneiras semelhantes. Muitos já constataram que super-heróis são semelhantes a versões modernas de deuses gregos. Apesar de super-humanos, muitas das suas atitudes e conflitos refletem a cultura da vida real de seus criadores. Super-heróis refletem os valores e esperanças do mundo que têm origem, enquanto supervilões representam seus medos e inseguranças. Às vezes, a vida real representada nessas metáforas de super-heróis pode mudar ao longo do tempo – o preconceito contra os mutantes da Marvel tem sido um elemento dentro dessa história por décadas, e como os tempos mudaram, ela agora é usada como uma alegoria para o racismo, homofobia e basicamente, todas as formas de intolerância, num mundo em evolução. Até mesmo personagens e histórias que não são tão simbólicas, são frequentemente influenciadas pelas crenças de seus criadores e da cultura onde estão inseridos.

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Então, as leis que seriam teoricamente postas em prática para definir o que é um super-herói, o que podem e não podem fazer, refletem também uma opinião sobre quando é apropriado usar força extrema ou mortal para resolver o conflito. Quando deve Izuku, Saitama, Superman e Capitão América ser autorizados a utilizar força sobre-humana, e quanta força eles devem ser autorizados a utilizar? Que verificações e balanços devem estar no local para garantir que eles usem seus poderes de maneira responsável? Que condições os desqualificariam de serem autorizados a usar os seus poderes? Heróis altruístas devem ter permissão e mais liberdade para usar seus poderes para o bem, ou se confiarmos demais neles criaremos uma ameaça para a segurança das pessoas? Obviamente, não há exemplos da vida real de leis de super-heróis para responder a essas perguntas. Mas se no lugar disso, você considerar como os Estados Unidos e o Japão têm abordado as leis de controle de armas, você começa a ter uma ideia do porquê super-heróis DC/Marvel e Shonen Jump existem em configurações diferentes.

EUA e Japão são tão diferentes quanto sua postura no tratamento de armas de fogo. No Japão, os cidadãos não estão autorizados a possuir armas de qualquer tipo, enquanto na América, a capacidade de possuir armas é um dos direitos mais importantes oferecidas a todos os civis. Existem muitos regulamentos e cláusulas que preveem exceções a ambas as leis – cidadãos japoneses podem possuir e utilizar alguns tipos de armas, enquanto cidadãos americanos não estão autorizados a possuir alguns tipos ou carregá-los em certos lugares – mas as duas nações abordam o assunto de ângulos completamente opostos. Como resultado, o Japão tem um dos mais baixos índices de armas per capita de países desenvolvidos, enquanto a América tem o maior, o único país que possui mais de uma arma por cidadão.

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Genos, o ciborgue de One Punch Man

Não vamos entrar na discussão política se uma ou outra nação está fazendo isso melhor ou pior que o outro. O ponto é apenas para ilustrar o quão diferente as pessoas são. Estados Unidos e Japão tem atitudes tão divergentes em relação a armas por características enraizadas em suas diferentes culturas e histórias. Voltando à comparação com deuses gregos, considere Ares, o deus da guerra. Muitos mitos gregos envolvendo Ares o mostram como um bárbaro cruel, mas também um covarde que iria fugir para a Olympus depois de sofrer pequenos ferimentos. Estas primeiras histórias olham ele com desprezo, mas Ares era visto de forma contrária pelos espartanos, que lhe viam como um modelo de soldado, e seu equivalente romano, Marte, era considerado valente e corajoso, entre os deuses mais importantes do panteão romano. Quando observamos que Esparta era a cidade mais militar dos estados gregos, e que o Império Romano conquistou muitos territórios ao longo de séculos, estas interpretações mais positivos de Ares fazem todo sentido. Um símbolo pode ser a mesma coisa para duas culturas diferentes, mas serão retratadas de maneiras distintas com base em como as culturas se sentem sobre isso.

Para os Estados Unidos, a posse de armas de fogo tem sido um direito civil vigente desde a fundação do país. Após a Guerra Revolucionária, as pessoas estavam desconfiados com o governo principal. Armas de fogo foram – e muitas vezes ainda são – visto como um meio para impedir que o governo ultrapasse seus limites e traiam os direitos individuais. Essa atitude é própria dos Estados Unidos, então é natural que o ponto de vista contra a regulação em histórias DC e Marvel sejam defendidas pelos rostos patrióticos do Superman e Capitão América. Em contraste, há poucos momentos positivos na história do Japão associados com o uso de armas de fogo. Restrições no controle de armas é algo constante na nação, suportando vários tipos de governo, por centenas de anos. A última grande mudança de regime ocorreu após o fim da Segunda Guerra Mundial, que deixou o Japão tão devastado, que uma nova lei foi escrita decretando que ele nunca iria declarar guerra aberta novamente. Portanto, para uma nação (EUA), as armas estão associados com a capacidade de lutar pela liberdade pessoal, quando tudo mais der errado; enquanto a outra nação (Japão) se concentra nos pontos negativos e perigosos.

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Essas atitudes diferentes em relação a armas refletem nossos sentimentos sobre os super-heróis, não só em termos de leis existentes, mas mesmo como o público se sente a respeito dessas leis. O controle de armas nos EUA tem sido uma questão de debate político ao longo de décadas. É um assunto que divide opiniões, constantemente gerando discórdia entre políticos, lobistas, e em cidadãos comuns. Alguns consideram que é essencial para preservar o direito dos cidadãos de portar armas, enquanto outros argumentam que as mortes causadas por armas superam o valor desse direito. Há diversas opiniões sobre questões de controle de armas, prolongando o debate. Mas no Japão, até mesmo os entusiastas de armas apoiam o controle de armas restritivo, que armas só devem ser usadas para a caça ou esporte, não para autodefesa, a menos que você seja um agente licenciado da lei. Há também um número de pessoas que pedem restrições mais leves em armas, mas o movimento contra é quase predominante.

Por isso, Batman vs. Superman e Guerra Civil, são conceitos relativamente novos – é um meio de introduzir uma nítida divisão de opiniões da história americana. Ninguém sabe realmente o que fazer com os super-heróis e eles ainda lutam entre si porque não há nenhuma opinião unanime sobre a abordagem ideal que o governo deva tomar. Assim como com armas, alguns acreditam que poderes sobre-humanos podem ser usados para proteger os inocentes e combater ameaças, de modo que restringir esses poderes seria errado; outros acreditam que esses mesmos poderes utilizados de forma irresponsável podem causar um grande dano, por isso eles precisam ser devidamente controlados. Confusão e discordância são o status quo, mas em Boku no Hero Academia e One Punch Man, a sociedade prefere ter mais tempo para se ajustar a existência de heróis e super-poderes, e já decidiram o que fazer com eles. Houve um tempo em que os japoneses estavam na mesma confusão de opiniões e dúvidas, mas agora não é essa a história que está sendo contada, porque não condiz com a situação atual da sociedade moderna japonesa, com relação a poderes possivelmente perigosos. E esse momento se reflete na forma como seus heróis são retratados.

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O aprendiz de herói Midoriya e seu ídolo All Might, no anime considerado um símbolo da paz japonês, assim como Superman é para os norte-americanos

Heróis – com super poderes ou não – são definidos pelos valores que representam. Nossa capacidade de torcer por heróis depende do quanto podemos nos identificar com o que eles representam e como lutam. Quando os criadores trazem valores discordantes em suas histórias, seus heróis serão, inevitavelmente, diferentes entre si. Super-heróis são o tipo mais simbólico de herói, já que a realização de tarefas que as pessoas normais não poderiam, eles conseguem porque não estão presos pelos limites da humanidade. Super-heróis japoneses, mesmo criados após Superman, não vão defender a verdade, a justiça e da maneira americana. Em vez disso, Izuku e Saitama representam valores como humildade, dedicação e superação. Ao examinar os valores dos nossos heróis favoritos, podemos compreender como nos sentimos sobre as culturas em torno de nós.


Glossário
Panteão: Conjunto de deuses de um povo.
Lobista: Figuras políticas contratadas para convencer outras pessoas de um determinado ponto de vista.
Status quo: estado atual. Está relacionado ao estado de fatos, situações e coisas, independente do momento.

Via Anime News Network
Texto original: Nik Freeman
Tradução e adaptação: Jéssica Oliveira